Por
Francisco Fonseca, no sítio Carta Maior:

Passadas
as manifestações de junho, e mesmo de julho, que abalaram o país,
os desdobramentos que daí advieram, do ponto de vista das demandas
por reformas, em boa medida ou retroagiram ou foram postergados para
as calendas. Mas, mais importante, tal conjuntura parece apontar para
um aspecto central da política: o esgotamento da aliança
conservadora de classes organizada sob o lulismo.
Conjunturas
podem, por vezes, revelar – normalmente de maneira polifônica –
situações de mudança estrutural, como aparentemente é o caso.
Embora não se tenha completa clareza do significado das
manifestações que, a rigor, continuam por motivações diversas e
distintas, e revelam claras disputas ideológicas e consequentemente
de poder, o fato é que o chamado “pacto de classes” instaurado
pelo Governo Lula está em crise, sendo o Governo Dilma sua
expressão.
O
pacto levado a cabo a partir de Lula inseriu, como apenas os Governos
Vargas de certa forma o haviam feito, os miseráveis e os pobres,
assim como os setores populares organizados, tais como os movimentos
sociais e o sindical, mas não enfrentou os privilégios das classes
médias superiores, notadamente a rentista, e do grande Capital.
Exemplos claros dessa aliança “pelo alto” são o imobilismo
perante um conjunto de reformas não realizadas, tais como, entre
outras: a reforma tributária, tendo em vista o perverso e iníquo
modelo brasileiro que extrai dos mais pobres proporcionalmente mais
impostos do que dos mais ricos, assim como a não retomada do debate
acerca dos impostos sobre grandes fortunas. Ainda mais grave se torna
esse quadro em razão da histórica desigualdade social no país; a
sangria dos juros da dívida interna, que favorece cerca de vinte mil
famílias de rentistas, incluindo-se os grandes bancos, e que foi
ampliada (a dívida) com os aumentos periódicos das taxas de juros;
a estrutura fundiária/agrícola, articulada ao agronegócio, cuja
contribuição para o PIB pela via das exportações paralisou
qualquer tentativa de reforma estrutural do campo; o oligopólio
midiático, responsável pela criminalização dos movimentos
sociais, pela desqualificação das instituições políticas e pelo
golpismo como forma de ação política reagente a qualquer reforma
democrático/popular, cujos órgãos de comunicação representam
justamente as classes médias superiores e o Capital: tal oligopólio
não foi combatido, pelo contrário, como o demonstram simbolicamente
as presentes de ministros das Comunicações dos governos Lula e
Dilma (Hélio Costa e Paulo Bernardo); a estrutura creditícia
federal, fortemente vinculada aos interesses do grande capital
(sobretudo o BNDES, mas também o BB e a CEF): embora tenham efeitos
propagadores ao emprego e à renda, a manutenção dessa estrutura
não permitiu a reversão do ciclo histórico da apropriação do
Estado pelas elites econômicas; o sistema político privatizado, por
meio da consolidação do “caixa dois” e da fragmentação
partidária voltada em boa medida aos “negócios”, tendo em vista
a lógica das coligações/coalizões, no contexto da permanentemente
postergada reforma política; a participação popular, o controle
social e a transparência como aspectos cruciais – e que obtiveram
avanços –, mas não “radicalizados” a ponto de criar novas
correlações de força na sociedade, o que inclui a cooptação do
movimento social e sindical pelos aparatos estatais; a estrutura
simbólica, representada pela ideologia, segue os padrões históricos
– estéticos e substantivos – estadunidenses, o que implica a
manutenção do caráter dependente e associado da produção
cultural nacional e o descaso quanto à defesa da língua como
elemento fundante da soberania, contrariamente ao que nos ensinam os
franceses, apenas para citar dois exemplos; a exceção parece ter
sido a política exterior, uma vez que se buscou aproximações com a
América Latina, o Oriente Médio, a África e outros países fora da
tradicional vinculação ao hemisfério norte.
É
claro que houve inúmeros avanços, atestados por diversos dados e
indicadores, conforme tenho procurado demonstrar neste Portal em
artigos anteriores, mas tais avanços não lograram um país distinto
no que tange a mudanças estruturais. Em outras palavras, o modelo
incremental lulista, de pacto “de todos com todos”, embora
represente avanço tendo em vista o conservadorismo voltado às
“classes médias e ao Capital” vigente até então – isto é,
dos militares a FHC –, de forma alguma expressou um vetor
hegemônico no tocante às reformas sociais, econômicas,
político/institucionais e ideológicas. Ao contrário, os inúmeros
avanços ocorreram nas franjas do statu quo, sem colocar em xeque as
estruturas dos grandes privilégios e iniquidades. Vejamos como esse
processo vem ocorrendo:
• A
inclusão social se dá pelo consumo: daí o viés consumista da
chamada “nova” classe média que, de forma não casual, tende ao
conservadorismo político/ideológico. A aliança com o Capital
passa, portanto, também pelo aumento do mercado consumidor. Nesse
sentido, a privatização de Collor/FHC se sustenta pela maior oferta
de serviços, mas não tem como contrapartida aparatos estatais
capazes de enfrentar as mazelas de toda sorte da “privatização
selvagem” levada a cabo. Exemplo cabal disso refere-se à hegemonia
do Capital sobre o consumidor expresso pela fragilidade das agências
reguladoras. Tal fragilidade do Estado brasileiro tem impacto brutal
no cotidiano dos cidadãos: as áreas de telefonia e de seguro
privado de saúde são demonstrações cabais do “inferno
privatizado” que vive o brasileiro, mesmo das classes médias.
Afinal, a “popularização” dos serviços privados mostrou-se tão
ou mais ineficiente do que a vivenciada pela experiência de serviços
estatais. A privatização fora, contudo, até então desejo de
amplos setores da sociedade, seduzidos pelo discurso midiático
maniqueísta de que o Estado seria a fonte de todos os males e o
setor privado imanentemente eficiente e eficaz tendo em vista a
cantilena ideológica da “soberania do consumidor”.
• A
relação Capital/Trabalho vem sendo rearranjada vigorosamente
pró-Capital com a derrocada real e cotidiana da CLT – embora
juridicamente se mantenha –, uma vez que: a) a precarização do
trabalho, por meio de toda forma de terceirização, de trabalho
“autônomo” e parcial fragiliza o trabalhador; b) particularmente
a chamada pejotização da economia corrói profunda e
sorrateiramente os direitos trabalhistas; e c) tanto a demanda
história pela jornada de 40 horas como o altíssimo número de horas
extras, além dos incríveis números de acidentes no ambiente do
trabalho, se mantém, denotando a manutenção de padrões históricos
de acumulação capitalista no país. É claro que o chamado “modelo
flexível de acumulação” (pós-fordista) contribui fortemente
para tanto, mas não é suficiente para a compreensão histórica da
precariedade do trabalho no Brasil.
• A
universalização dos direitos sociais (SUS, SUAS, educação pública
etc) mantém-se aquém das necessidades dos cidadãos comuns, pobres,
que são a maioria esmagadora dos brasileiros. Claramente não se
investiu o suficiente para reverter a dura realidade dos fatores
cruciais que constituem a vida cotidiana: daí a atualidade da
retomada da agenda pelos 10% do PIB para a educação, da CPMF como
fonte de financiamento da saúde, e da desoneração
tributária/subsídio do transporte coletivo pelo individual ao
transporte coletivo. Paralelamente ao financiamento, problemas
relacionados à gestão das políticas sociais representam igualmente
sérios problemas a serem resolvidos. Não será, contudo, a
cantilena privatista e gerencial que irá resolver os problemas
públicos. Basta lembrar que, por exemplo, o SUS tem na iniciativa
privada seus principais fornecedores, que movimentam milhões de
reais, assim como a chamada contratualização dos serviços públicos
(pela via das Organizações Sociais e das Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público) não dinamizaram a
Administração Pública, tal como prometera. Apontei tais mazelas no
artigo publicado em 08/06/2013 neste Portal, intitulado “A
privatização da gestão pública”.
Dessa
forma, pode-se afirmar que as manifestações de junho/julho, mesmo
que polifônicas, aparentemente apontam para o esgotamento do pacto
incremental e conservador articulado pelo lulismo: por não enfrentar
os grandes poderes constituídos, por agir apenas nas franjas do
sistema de poder e por não “radicalizar a democracia”. A saída,
portanto, é virar à esquerda, num rearranjo de poderes que
privilegie os pobres por meio do orçamento voltado às reais
necessidades populares, por políticas públicas transformadoras,
pela real universalização de direitos, e sobretudo por uma nova
correlação de forças capaz de reestruturar o Estado no sentido de
dirigir o capitalismo. São tarefas urgentes, pois demandas vigorosas
dos setores populares, tanto os articulados em movimentos sociais
como as vozes – progressistas – que ecoam das ruas.
Nada
disso é fácil, assim como não há panaceias. Mas as manifestações
de junho, sobretudo, demonstraram que o tempo histórico foi
acelerado. Isso significa ser possível uma nova correlação de
forças capaz de, por meio de um projeto político à esquerda, criar
um novo ciclo histórico no país. O significado de “realismo” e
“do que é possível” se alterou rapidamente. A ágil compreensão
desse fenômeno é fundamental, mas sobretudo a ação com vistas a
um projeto político transformador está aberta como poucas vezes
esteve! Mas as disputas político/ideológicas estão mais acirradas,
o que implica igualmente maiores riscos!
Em
síntese, o grande pacto incremental – imanentemente conservador,
apesar de seus avanços – aparentemente entrou em crise, sendo a
contenda eleitoral a exteriorização, em termos institucionais, dos
fenômenos sociais/econômicos e político/ideológicos. Esta
sociologia política, a partir da conjuntura, nos permite analisar
tais fenômenos para ver neles o que é mais profundo.
*
Francisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de
ciência política no curso de Administração Pública e Governo na
FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a
formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora
Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle
Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas
no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e
artigos.
Fonte: BLOG DO MIRO
Fonte: BLOG DO MIRO
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