por: Saul Leblon
Marina Silva sentou-se
à direita da santíssima trindade dos mercados. Em amigável
périplo pela mídia, a ex-senadora se declara uma convicta defensora
do sacrossanto ‘tripé’. Que vem a ser uma espécie de
enforcador à distância. Sendo o pescoço, a sociedade. E os
mercados, a mão que controla a correia.
A coleira dentada
permite que o dinheiro grosso submeta governos, partidos e demais
instâncias sociais a um comando de desempenho monitorado por três
variáveis.
A saber:
I) regime de metas de
inflação, ancorado no chicote dos juros ‘teatrais’, se
necessários, assevera Marina em flerte com o ‘choque’
monetarista;
II) câmbio livre,
leia-se, nenhum aroma de controle de capitais; vivemos, afinal, em
um período de pouca volatilidade e incerteza global... e
III) o superávit
‘cheio’ – o nome honesto disso, convenhamos, é arrocho
fiscal: corte de investimentos públicos estratégicos para
garantir o prato de lentilhas dos rentistas.
Marina descobriu que
quando abre a boca encanta os banqueiros. Mas começa a ter
dificuldade com o vocabulário.
Como exprimir o que se
propõe a fazer no Brasil sem colidir com as boas intenções de seus
apoiadores?
Ao jornal Valor
Econômico, que lhe ofereceu uma página nesta 2ª feira, a parceira
de Eduardo Campos defende uma ‘disruptura’. Que diabo ela quer
dizer com isso?
Marina quer dizer a
mesma coisa que o Globo disse sábado, em manchete garrafal: ‘PSDB
melhorou serviços e PT reduziu desigualdade’. Ou seja, o passado
passou. Cada um fez o que pode.
Agora é olhar para
frente, juntar o que presta e descartar o resto. O nome da
travessia, ensaia o Globo, é Campos/Marina. Ou ‘disruptura’,
arrisca a sedutora ex-senadora.
Vamos abstrair do
interior da palavra ‘serviços’ detalhes que agridem a
apaziguadora manchete do Globo. Por exemplo, o ‘apagão’ de
2001. Ao custo de 2% do PIB, ele promoveria um corte de 20% do
serviço de energia elétrica oferecido aos brasileiros. Que,
todavia, pagaram pelo serviço não prestado.
Outra dissonância
entre a história vivida pela população e o jornalismo Globo: a
área sofrível do saneamento básico. No ano passado, o Brasil
aplicou R$ 8,3 bi na expansão desse serviço . É pouco. A média
necessária para universalizar o acesso em 20 anos seria da ordem
de R$ 20 bi ao ano.
Ainda assim representa
dez vezes mais o valor destinado há uma década, quando, segundo o
Globo, tivemos um ciclo de fastígio nos serviços.
Marina passa ao largo
dessas miudezas.
“ Como eu e Eduardo
reconhecemos tanto as coisas boas do governo do PT e do PSDB, talvez
sejamos a esperança de provocar uma "disruptura".
Ei-la, nesta 2ª
feira, em bate bola afinado com a manchete do domingo. Nas palavras
da ex-senadora, trata-se agora de buscar ‘uma agenda que não
mude porque mudou o governo’. Escavar um fosso entre a
representação política da sociedade e o poder efetivo sobre o seu
destino , é tudo o que as plutocracias almejam, urbi et orbi.
Se alguém trata isso
com leveza e sedução, como resistir?
‘Impressionante’ ;
‘cativante’, disseram clientes endinheirados do Credit Suisse
, banco que patrocinou um encontro a portas-fechadas com a
ex-ministra na 6ª feira.
Há notável coerência
entre desdenhar dos partidos e entregar o destino da sociedade a uma
lógica que se avoca autossuficiente e autorregulável. Marina
passeia por um Brasil plano. Mas o mundo não é plano. E o relevo
econômico do Brasil inclui-se entre as encostas mais acidentadas
pela ação secular de predadores, ora cativados pela ex-ministra.
Os ouvidos para os
quais as vozes de Marina, Campos e Aécio soam como música –assim
como soava a de Palocci, em 2003-- sabem que drenar R$ 223
bilhões em juros de um organismo social marcado por carências
latejantes de serviços e infraestrutura não é sustentável.
O valor refere-se ao
total das despesas com juros da dívida pública (nas três esferas
da federação) pagos em 12 meses até outubro. Representa uns 5% do
PIB. Mais de dez vezes o custo do Bolsa Família, programa que
beneficias 14 milhões de famílias, 55 milhões de pessoas.
Ou quatro vezes o que
supostamente custaria a implantação da tarifa zero no transporte
coletivo das grandes cidades brasileiras. Ou ainda dezoito vezes mais
o que o programa ‘Mais Médicos’ deve investir até 2014, sendo:
R$ 2,8 bilhões para construir 16 mil Unidades Básicas de Saúde e
equipar 5 mil unidades; ademais de R$ 3,2 bilhões para obras em 818
hospitais e aquisição de equipamentos para outros 2,5 mil, além
de R$ 1,4 bilhão para obras em 877 Unidades de Pronto Atendimento.
Repita-se: daria para
fazer isso 18 vezes com o valor destinado ao rentismo em um ano.
Não serve de consolo
dizer que no final do governo FHC gastava-se quase 10% do PIB com
juros. O investimento público direto da União em logística e
infraestrutura social era um traço. Agora oscila em torno de 1%
(descontado o Minha Casa).
Muito distante do
desejável para uma sociedade que atingiu o ponto de saturação na
convivência com serviços insuficientes e de baixa qualidade. O
ponto é: como Marina que supostamente herdou os votos dessa
insatisfação, pretende lidar com assimetrias descomunais, apoiada
na defesa algo deslumbrada, tosca e jejuna, do ‘tripé’?
“Se o tripé ficou
comprometido, é preciso restaurá-lo”, sentenciou quase blasé
aos clientes embasbacados do Credit Suisse. Ao abraçar a utopia
neoliberal Marina aspira ser uma pluma imune ao atrito que contrapõe
os interesses populares aos da elite brasileira. Exerce na verdade o
surrado papel da bigorna histórica, sobre a qual amplos interesses
são submetidos aos golpes da marreta impiedosa do dinheiro.
Para isso está sendo
cevada. Ao que parece, tomou gosto pela ração. E já ensaia comer
sozinha.