O teórico do lulismo diz que as manifestações de rua abriram um ciclo
longo de mobilizações que colocarão o governo e o país diante de
escolhas cruciais
GUILHERME EVELIN
O cientista político André Singer é um festejado teórico do “lulismo”
– como ele batizou o alinhamento de segmentos sociais, antes hostis ao
PT, às forças políticas comandadas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. Embora surpreso com a forma como eclodiu, Singer diz que o
movimento que tomou conta das ruas do Brasil estava “meio anunciado”.
Ele o relaciona à ascensão de um “novo proletariado”. Nos últimos anos,
diz, ele ganhou emprego e renda, mas vive ainda de forma precária. Para
Singer, a emergência do movimento coloca o governo Dilma diante de uma
encruzilhada. Os manifestantes pedem mais gastos públicos, enquanto o
mercado cobra austeridade.
À ESQUERDA - O cientista político André Singer, em sua casa em São
Paulo. Para ele, as mobilizações vieram para ficar (Foto: Camila
Fontana/ÉPOCA)
ÉPOCA – As manifestações são um abalo para o lulismo? Acabou a lua de mel da maioria da população com o PT?
André Singer – Elas representam um possível retorno do movimento de
massas, ausente no cenário político brasileiro desde, pelo menos, 1992.
Ele começou a desaparecer com a derrota eleitoral de Lula em 1989,
quando se encerrou um ciclo de dez anos de mobilizações. O movimento tem
hoje características novas e não pode ser ainda caracterizado como um
abalo, mas um desafio importante. Coincidiu com um momento complicado da
economia. O lulismo enfrenta duas forças em direções contrárias. Essas
manifestações tendem a ser um movimento por aumento de gasto público. E,
do lado do capital, vemos pressão pelo corte dos gastos públicos. É um
momento que representa um desafio para o lulismo. Não havia, nos setores
que se mobilizam, uma lua de mel com o governo. Há uma forte base do
lulismo no subproletariado, um setor expressivo da população, que não
está na rua.
ÉPOCA – Quem está na rua?
Singer – Minha hipótese é que as manifestações estão compostas de duas
camadas sociais. Uma são os filhos da classe média tradicional,
estabelecida assim há mais de uma geração, que possivelmente puxaram as
manifestações. Elas ganharam adesão também do que chamo de novo
proletariado. Não é uma nova classe média. São jovens que não pertencem a
famílias nitidamente de classe média, mas passaram a ter emprego por
causa do lulismo. Mas têm empregos precários, com alta rotatividade, más
condições de trabalho e baixa remuneração. Ao longo das manifestações, a
participação desse segundo grupo foi aumentando. Isso talvez explique
por que, na segunda etapa, elas se expandiram pela Grande São Paulo,
pelo Grande Rio e pelas cidades em torno das capitais. A segunda camada é
muito mais extensa do que a primeira e mostra o potencial do movimento.
ÉPOCA – A que o senhor atribui a insatisfação que emergiu?
Singer – O lulismo é um processo de reformismo fraco, de mudança
estrutural do Brasil, mas muito lento e concentrado no subproletariado,
os mais pobres. De um modo geral, esse subproletariado não está nas
capitais. É mais expressivo no Nordeste ou no interior do que nas
grandes capitais. O lulismo é um modelo que favoreceu essa camada e,
indiretamente, também os trabalhadores urbanos, porque aumentou emprego e
renda. Mas os problemas urbanos das grandes metrópoles são muito caros.
Para você conseguir resolvê-los, precisa fazer investimentos
gigantescos, que teriam de sair dos cofres públicos. Para isso, teria de
haver um rearranjo, em matéria tributária ou de serviços da dívida, ou
na forma de taxação das grandes fortunas, ou tudo isso junto. Isso não
foi feito. Os problemas urbanos se acumulam e se somam à precariedade da
situação do novo proletariado. A situação estava meio anunciada, porque
esse setor tem condições agora de reivindicar. Na verdade, foi
completamente inesperada a maneira como o movimento emergiu. Mas, em
retrospecto, a equação que explica o que aconteceu é bem clara.
ÉPOCA – Por que o senhor localiza o fim do movimento de massas em 1989 – e não no impeachment de 1992?
Singer – As manifestações pelo impeachment de Collor são uma espécie de
uma última aparição daquele grande ciclo, que já terminara. O ciclo
acaba em 1989, porque a derrota de Lula abriu a porta para o
neoliberalismo no Brasil e quebrou a espinha dorsal da classe
trabalhadora organizada, com aumento do desemprego. Houve uma diminuição
expressiva no número de trabalhadores industriais nos anos 1990,
seguida pela década do lulismo, onde começou a recomposição do trabalho.
É um erro pensar que os movimentos sociais de massa ocorrem na
depressão econômica. Eles ocorrem depois da ascensão das condições
econômicas.
“Há um pacote para produzir um ajuste recessivo. As manifestações dizem: ‘Isto não!’”
ÉPOCA – As manifestações não têm liderança, não têm organização, não têm partido. Por que virariam um grande movimento?
Singer – Há uma recusa dos partidos, dos sindicatos, das instituições
tradicionais. O princípio fundamental é a descentralização. São
movimentos horizontais, em que a orientação principal é não ter
hierarquia. Essa horizontalidade tem uma enorme vantagem. Os movimentos
são pouco propensos à burocratização, grande problema de partidos e
sindicatos. Isso é extremamente saudável. Mas há uma contrapartida: eles
não têm uma direção clara e centralizada. Essa característica torna
esses movimentos mais difíceis de entender. No que isso vai dar? Foi
desencadeada uma energia social que não voltará atrás rapidamente. O
curso que ela encontrará não sei dizer. Mas acredito que outras coisas
desse tipo virão.
ÉPOCA – Quais serão as consequências no sistema político?
Singer – O novo ator impacta o sistema político, mas não o substitui. O
sistema político continuará funcionando. Não deixará de existir, porque,
na verdade, passamos por um momento em que esses novos movimentos não
têm alternativa. Os partidos terão de incorporar coisas, dialogar com o
movimento, fazer concessões, mudar. Alguns ganharão. Outros perderão.
Para dar um exemplo concreto, o próprio movimento da Marina Silva é uma
antecipação disso, porque ela fala aos ouvidos de parte dos
manifestantes.
ÉPOCA – Marina será a grande ganhadora?
Singer – Não digo isso, porque, embora esse movimento se caracterize
pela horizontalidade, ele tem uma agenda materialista. Estamos falando
da distribuição da riqueza. É isso que está em jogo: para onde vão os
recursos, sejam os públicos, sejam os que transitam entre capital e
trabalho. Marina lida muito mal com essa agenda materialista, porque ela
quer ficar no meio. Essa posição é inviável.
ÉPOCA – Qual pode ser a consequência nas próximas eleições presidenciais? Atrapalha a reeleição da presidente Dilma?
Singer – É impossível fazer um prognóstico. As manifestações pendem para
a esquerda. O impacto sobre a candidatura Dilma dependerá de como ela
lidará com essa pressão, por mais recursos para transporte, saúde,
educação e segurança.
ÉPOCA – E o PT? Como será afetado?
Singer – O PT está desafiado, com o lulismo. Como o PT tem uma
importante, embora não dominante, facção de esquerda, esses setores
estão diante de perguntas existenciais.
ÉPOCA – O lulismo atendeu aos anseios de consumo de parte da
população. Esse modelo de crescimento não foi posto em xeque pelas
manifestações, que pedem melhores serviços públicos e não mais consumo?
Singer – Não creio que seja um problema do modelo de crescimento. Ele
incluiu pessoas excluídas. Com isso, ativou a economia por baixo. Mas
houve uma diminuição da margem para isso. Desde 2011, estamos num quadro
complicado, que tem a ver com a crise do capitalismo iniciada em 2008.
Acreditava-se que tinha sido contida em 2009. Na verdade, não conhecemos
ainda o final do túnel. Se a economia tivesse continuado com um
crescimento maior, haveria margem para investir mais em saúde, educação,
segurança. Mas ela anda devagar. Os recursos estão mais escassos. Os
juros subiram. As restrições ao capital especulativo foram retiradas. E
agora há uma enorme pressão para cortes de gastos públicos. Há um pacote
para produzir um ajuste recessivo na economia. De alguma maneira, as
manifestações dizem: “Isto não!”.
ÉPOCA – O senhor diz que o lulismo não procurou enfrentar o
capital na política econômica. Nos últimos dois anos, o governo a
flexibilizou, e os resultados foram crescimento baixo e inflação mais
alta, por causa dos gastos públicos. A estratégia desenvolvimentista de
Dilma não deu resultados.
Singer – Isso mesmo. Na crise mundial, o governo Dilma decidiu dar um
passo à frente e modificou os termos da política neoliberal. O
resultado, em crescimento, foi decepcionante. Os economistas dizem:
faltou investimento. Algo na equação então falhou, porque tudo foi feito
para proteger o capital produtivo brasileiro. Tenho ouvido reclamações
contra o intervencionismo do governo, mas é um intervencionismo para
facilitar a vida desse capital. O que não funcionou não está claro
ainda. Não quero subestimar o tamanho dos problemas. Mas, se é para
seguir a linha reformista, esses problemas precisam ser enfrentados para
manter as mudanças. Se voltar à agenda neoliberal, não dá para fazer as
mudanças.
ÉPOCA – Mas Dilma já tem recuado. Aumentou os juros e voltou ao câmbio flutuante.
Singer – O governo tem recuado nos últimos seis meses. O capital pede um
novo recuo, com o corte dos gastos públicos. Essas manifestações pedem o
aumento dos gastos. Por isso, é um momento em que os desafios são
sérios e cruciais. Essa é a questão: para onde o governo penderá nessa
bifurcação.
ÉPOCA – Pode haver uma desestabilização do governo?
Singer – Não creio. O governo tem capacidade de entender o que acontece e
demonstrou que não está descolado. Tenho certeza de que tentará
equacionar as questões.
ÉPOCA – Como resultado, as instituições mudarão?
Singer – Sim e não. Sim, pois serão obrigadas a alguma abertura. Mas não
a ponto de se desfazer. Os sistemas político e econômico continuarão em
suas bases tradicionais. Pode estar se abrindo um ciclo longo, em que
haverá as duas coisas. É o que acontece na Europa e mesmo em outros
países, onde ocorreu a Primavera Árabe. Os movimentos lá foram enormes,
mudaram o regime político. Mas, quando houve eleição, os partidos
tradicionais ganharam. É o que deverá acontecer aqui. Temos, nas ruas,
milhares de pessoas. Mas o eleitorado são milhões. Esses milhões é que
votarão e decidirão.
Fonte: Revista Época
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